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20.8.12

Mais um ciclo


Enquanto lhe escorria pela veia o medicamento que, periodicamente, permitia seguir sua vida como se nada houvesse, discorria em sobressaltos de pensamento sobre a incerteza da vida. As pessoas comuns caminhavam todos os dias sem se dar conta dessa condição da existência, mas esse luxo não era garantido aos doentes, que sentiam cotidianamente como suas vidas podiam mudar e, mesmo, acabar, num piscar de olhos.

O raciocínio era, como de costume, circular. Estava acostumado a essa sensação com a qual lidava até à exaustão, até perder o fôlego para, então, abandoná-la até o próximo momento de sufoco. Que profundo incômodo não ter ideia do que lhe poderia acontecer no dia seguinte, depois de mais uma pílula, mais uma dose de vida. Às vezes, quando sentia preguiça ou desânimo, vinha de novo o sobressalto: era preciso viver antes que a incerteza batesse à sua porta. Talvez por isso tenha sido sempre, toda a vida, tão inquieto. Mal concluía qualquer atividade, já estava às voltas com a famosa pergunta: o que vem depois? Aprendeu várias línguas, viajou, mudou-se incontáveis vezes. Esse era um dos resumos possíveis de sua vida.

Adicione-se a essa curta história o fato de que adoeceu por meses, perdeu em dores de distintas intensidades cerca de um ano de seus trinta e poucos. E, depois disso, meio inconscientemente, contava sua idade a partir daquele dia, registrado claramente em sua memória. Voltar a caminhar, literalmente pé-ante-pé, sustentar as pernas, subir dois lances de escada. Amigos e família ao redor, celebrando. No entanto, naquela manhã de passos curtos e pouco certeiros, faltou o fôlego, sentou-se. Naquele momento, aprendera a valorizar o pequeno que era grande. Não tinha alternativa. Depois de dois meses internado, com as olheiras ultrapassando as barreiras de seu rosto, tinha de se agarrar àquele fio de vida, o caminhar. Mais tarde, ao sair do hospital, valorizou as cores dos dias, mas teve medo de estar ali, de pertencer novamente ao exterior. Aos poucos, esqueceu-se da redescoberta consciente da vida que se desdobrava diante de seus olhos e dos medos que a rondavam, e voltou a viver como os demais, com os demais. No entanto, a cada dois meses, era colocado à prova novamente, conectado a cabos que lhe vendiam vida longa, diante de médicos crédulos, que insistiam em dizer: é melhor se cuidar, o remédio vai ajudar, os estudos revelam que... 

E naquele dia de lembranças do passado misturadas às perspectivas fluidas do futuro, em que a medicação pingava incolor por uma veia já um pouco castigada, sentiu mais uma vez como se a vida pudesse se partir. A vida era mesmo um fio. E desse fio não queria e não devia se desprender. Pensou em dormir para apaziguar a mente já atribulada e esquecer, por alguns instantes, as cores verdes e brancas daquele quarto impessoal, solitário, insosso. Fugir, de dentro para fora. Foi então que veio o lanche da enfermaria e, diante de uma torrada salgada e um café mal feito, celebrou a simpatia daquela atendente que lhe trouxe a bandeja torta, mal acabada. Lembrou-se de que tinha de cancelar um compromisso em função de seu dia hospitalar, entrou em contato com o pessoal do trabalho, o celular voltou a tocar. Era o fio da vida retomando seu ciclo. Ao menos pelos próximos dois meses. Tic-tac.

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