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23.8.12

Mãe e pai

A cinta de seu pai comprimia suas pernas, roçava seu corpo magro e miúdo e ela tinha medo. O pai, aflito, a carregava num movimento automático. Automático porque, por ora, estava atento às placas e aos sinais de uma cidade que, já naquele tempo, dava demonstrações contínuas de que seguia crescendo, cinza e desenfreada.

Ela, amedrontada; ele, assustado. Dois próximos-estranhos que enfrentavam mais uma vez a rigidez da vida, cada um à sua maneira, cada um com um foco bastante distinto. Ela e o medo dele, ele e o receio da perda dela. 

Essa cena marcaria as lembranças de ambos, pai e filha.

O pai, orgulhoso, relembrava a situação anos a fio para reportar o quanto havia feito por sua filha que, desde menina, lutava por uma caminhada que insistia em descompassar. Com certo brilho nos olhos e um riso de meia boca, dizia dos dias de sufoco quando desbravaram São Paulo para enfrentarem a paralisia. 

A filha, em contrapartida, frente às memórias narrativas de seu pai, colocava os olhos e a atenção de lado, cada vez que a história (estória?) surgia. As ruas, o barulho, os carros, os prédios, os médicos. Nada. Nada daquele enredo lhe parecia familiar. Para ela, apenas a cinta, marca registrada da educação truculenta daquela época. Mesmo em uma menina tão fragilizada?Também nela. 

Mas, num dia claro de inverno, aquela história não seria mais contada. O silêncio do entorno representava o fim. A televisão ligada baixinho, a mãe sentada na sala, os parentes que se tinham já despedido. As roupas selecionadas em cima da cama. 

Naquele dia,em que a dor se esvaía em morte, ocorreu a ela vesti-lo de dignidade e ternura. Sob os olhares atentos e profundos da mãe e da irmã, vestiu o pai cuidadosamente. A calça, a camisa, a gravata, o terno. A cinta repousava na lateral da cama. Cautelosa com os detalhes, esqueceu-se criteriosamente de acrescentar-lhe o adereço sinônimo de angústia e dor. 

Não. Aquele dia representaria despedida leve, construída a partir de lembranças serenas. As pernas cambaleantes do passado, agora menos claudicantes. O olhar do pai já não pairava no ar. Colocou-lhe os sapatos. A cinta na cama. A mãe a observar, em silêncio. Ele se foi.

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