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4.9.12

Maratoma - 11 anos


Lembrava-se claramente do dia em que se conheceram. Namorava um outro rapaz e foram apresentados por um grande amigo em comum. Naquele dia, não imaginava o que viria anos depois, tempos depois. Hoje, certamente se surpreenderia se dissessem naquele momento: olha, você vai até se casar com ele, sabia?

Mas ninguém disse nada e ela seguiu seu caminho. Encontrou o rapaz tantas vezes na faculdade, ficaram até amigos. E ela insistia para que suas amigas o paquerassem. O rapaz merecia uma boa paquera: bonito, simpático, cheiroso e, para melhorar, com sorriso sempre no rosto. Nunca deu certo: tinha amigas que participavam de outras rodas, não se encontravam nas mesmas ocasiões.

Com o tempo, passaram a compartilhar um com o outro histórias de vida nesses encontros casuais de rua. Como tinham os mesmos amigos, viam-se cada vez mais, até mesmo quando estavam cada um com seu par.

Quando ela ficou sozinha e ele também, surgiram os burburinhos. Já viu. Amigos em comum buscando a alegria de duas almas perdidas por aí... Pois bem. Era gente falando para ela de um lado, gente falando para ele do outro. Ela não quis colocar “abobrinha” na cabeça, deixou pra lá.

Foi quando decidiram participar juntos de uma das “competições” mais curiosas da faculdade: a Maratoma. Era preciso correr e passar por sete postos para tomar uma latinha de cerveja em cada posto. A competição era feita em trios que, para terem direito ao prêmio, não poderiam ser mistos. Ou só homens ou só mulheres.

Sem nenhuma pretensão de vencer a prova, juntaram-se ela, ele e um amigo em comum. Na verdade, a penetra do grupo era ela. Depois da “desclassificação” de um amigo, ela acabou por ocupar seu lugar nessa difícil missão de correr e beber pelas ruas da faculdade. Que tempos eram aqueles, afinal?

Chegado o grande dia, optaram por trajar a mesma camiseta para caracterizar o grupo. Não poderiam se perder tampouco abandonar a prova durante a competição. Aquilo era coisa séria, oras. A roupa não poderia ser mais adequada: um abadá da Timbalada. Antigo, mas comum aos três. Alguns amigos haviam preparado inclusive um carro de som, um mini trio elétrico, que circularia pela rua enquanto eles  (e outros tantos) participavam da prova.

As três primeiras latas de cerveja foram fáceis de encarar. Cada um tomou a sua e seguiram em frente junto com o trio elétrico improvisado. Faltavam 6 postos, mas já naquele primeiro perceberam o que os aguardaria: gente com pressa, gente rindo, gente carregando mesa e cadeira para poder sentar em cada posto e tomar sua cervejinha com calma. Era maluco para todo lado. Diversão garantida, claro.

Para ela, tudo corria bastante bem, embora o mundo já girasse um bocado. A lua cheia é que começou a lhe dar trabalho... Quando o sol começou a cair e a lua, a subir, veio logo a perdição. Ela ficou encantada com o que viu no céu. Uma lua incrível. E depois de várias paradas, histórias as mais diversas pelo caminho e o início de uma paquera com aquele moço cheiroso, ao invés de seguir para o sétimo posto da competição, convidou o rapaz para ver a lua. Aquela lua, não dava para perder.

E no meio da lua, da embriaguez e da diversão dos 20 e poucos anos, num gramado afastado de toda a gente, beijou aquele moço como se não houvesse amanhã. E, de fato, os amanhãs seriam outros. Depois de tanto incentivo frustrado dos amigos, a lua colaborou para um beijo que foi comentado a noite toda. E em tantos dias seguintes.

Descabelados, zonzos e felizes, chegaram ao final da prova sem o terceiro elemento do trio que, órfão, não pode beber sua cerveja no posto final da prova, regras da competição. Durante aquela noite, às escuras, às escondidas, os dois divertiram-se como nunca. Era uma grande festa. Às amigas, ela repetiu infinitas vezes a beleza da lua e o gosto do beijo daquele rapaz. Dançou e dançou com ele, seu sorriso a devorou. 

Durante anos, o amigo abandonado do trio cobrou a cerveja faltante, paga, bastante justamente, na festa de casamento dos dois, anos depois. Todos estavam certos: eles haviam de combinar. Alguma dúvida de que, o que uma festa chamada Maratoma uniu, a vida não levaria com leveza?

26.8.12

Olhos


Quando entrou no banheiro, tudo o que viu foi um par de olheiras profundas. Havia dias, muitos dias, que não se colocava diante de um espelho. Na verdade, nos últimos tempos, a única maneira de se ver era através dos olhos dos outros. O que inicialmente se reconhecia como “janela da alma” - do outro - tornou-se para ela seu próprio reflexo. No olhar dos amigos que a visitavam - e também da família -, identificava claramente seu declínio. Nos médicos e enfermeiros, não. Não era capaz de identificar neles qualquer reflexo de sua condição. Para ela, eles funcionavam como verdadeiros vitrais transparentes. Nada ali era refletido.

E agora, diante daquela imagem, era capaz de entender o porquê das lágrimas daqueles que não a viam há algum tempo. Estava um horror. Se não cheirava mal, era porque via no banho o único ponto de vaidade mantido naquele período. Todo o mais se esvaiu em doença. As roupas não lhe importavam, os sapatos, os cabelos, seu corpo como objeto estético. E, ao se afastar dessa relação direta entre corpo e estética, afastou-se também dos espelhos e, com isso, da realidade de sua condição.

Até então, embora soubesse que não andava bem, não havia se dado verdadeiramente conta do que  lhe vinha acontecendo. Estava diante de uma situação passageira, dizia para si mesma, já já isso acaba. Naquele dia, porém, a mirada despretensiosa no espelho mostrou o contrário. E as sensações dos últimos dias despencaram sobre suas pernas frágeis, leves, finas.

De repente, percebeu como era difícil se sentar em uma cadeira convencional. Doíam-lhe os ossos. Olhou em volta e se deu conta: nas últimas semanas, passara boa parte de seu tempo na cama, inclusive para fazer as refeições. 

Deixou de andar fazia tempo: deslocava-se com a ajuda de uma cadeira de rodas e a força dos braços e pernas de sua mãe, ou de um enfermeiro, ou do marido. Quem estivesse mais próximo ou mais disposto a levá-la até o corredor ou ao jardim.

Embora fizesse sol lá fora, não gostava mais de passear. Era preciso muita insistência para que se mobilizasse a sair do quarto.

Foi assim, num estalo, diante daquele armarinho de banheiro, que experimentou a dura realidade de sua vida. Como se, antes daquilo, se sentisse apenas dentro de um filme, um conto de fadas, a história de outrem.  Como não se deu conta de que suas pernas já não acompanhavam seus anseios, seu corpo parecia ter minguado, seus cabelos estavam caindo?

Olhou ao redor. Viu as barras de apoio dentro do box do banheiro, ao lado do vaso e também na pia. A vista começou a turvar. Precisava sentar. Respirou fundo, colocou as mãos sobre a barra em torno da pia, olhou-se novamente no espelho. E deu-se conta: não lhe causava assim tanta espécie o que via diante do espelho, incomodava-lhe o reflexo no olhar dos que a visitavam. Mais difícil que viver uma doença era viver a doença aos olhos dos outros - próximos ou distantes.

Por isso, sentia-se tão à vontade diante dos tantos médicos que a visitavam diariamente. Acostumados a situações tão piores, nada demonstravam ao ver seus cambitos a cambalear pelo quarto e pelos corredores do hospital.

A vista foi escurecendo, não sentia mais as pernas, os braços se soltaram. Caiu desfalecida. Ao despertar, viu sua mãe com os olhos brilhantes. Dentro deles, seu reflexo. E a dor. Calou-se. Pediu morfina e solidão. Despediu-se daquelas retinas ao seu redor e, quando a porta bateu, prestes a dormir, pensou, já vai passar.

23.8.12

Mãe e pai

A cinta de seu pai comprimia suas pernas, roçava seu corpo magro e miúdo e ela tinha medo. O pai, aflito, a carregava num movimento automático. Automático porque, por ora, estava atento às placas e aos sinais de uma cidade que, já naquele tempo, dava demonstrações contínuas de que seguia crescendo, cinza e desenfreada.

Ela, amedrontada; ele, assustado. Dois próximos-estranhos que enfrentavam mais uma vez a rigidez da vida, cada um à sua maneira, cada um com um foco bastante distinto. Ela e o medo dele, ele e o receio da perda dela. 

Essa cena marcaria as lembranças de ambos, pai e filha.

O pai, orgulhoso, relembrava a situação anos a fio para reportar o quanto havia feito por sua filha que, desde menina, lutava por uma caminhada que insistia em descompassar. Com certo brilho nos olhos e um riso de meia boca, dizia dos dias de sufoco quando desbravaram São Paulo para enfrentarem a paralisia. 

A filha, em contrapartida, frente às memórias narrativas de seu pai, colocava os olhos e a atenção de lado, cada vez que a história (estória?) surgia. As ruas, o barulho, os carros, os prédios, os médicos. Nada. Nada daquele enredo lhe parecia familiar. Para ela, apenas a cinta, marca registrada da educação truculenta daquela época. Mesmo em uma menina tão fragilizada?Também nela. 

Mas, num dia claro de inverno, aquela história não seria mais contada. O silêncio do entorno representava o fim. A televisão ligada baixinho, a mãe sentada na sala, os parentes que se tinham já despedido. As roupas selecionadas em cima da cama. 

Naquele dia,em que a dor se esvaía em morte, ocorreu a ela vesti-lo de dignidade e ternura. Sob os olhares atentos e profundos da mãe e da irmã, vestiu o pai cuidadosamente. A calça, a camisa, a gravata, o terno. A cinta repousava na lateral da cama. Cautelosa com os detalhes, esqueceu-se criteriosamente de acrescentar-lhe o adereço sinônimo de angústia e dor. 

Não. Aquele dia representaria despedida leve, construída a partir de lembranças serenas. As pernas cambaleantes do passado, agora menos claudicantes. O olhar do pai já não pairava no ar. Colocou-lhe os sapatos. A cinta na cama. A mãe a observar, em silêncio. Ele se foi.

20.8.12

Mais um ciclo


Enquanto lhe escorria pela veia o medicamento que, periodicamente, permitia seguir sua vida como se nada houvesse, discorria em sobressaltos de pensamento sobre a incerteza da vida. As pessoas comuns caminhavam todos os dias sem se dar conta dessa condição da existência, mas esse luxo não era garantido aos doentes, que sentiam cotidianamente como suas vidas podiam mudar e, mesmo, acabar, num piscar de olhos.

O raciocínio era, como de costume, circular. Estava acostumado a essa sensação com a qual lidava até à exaustão, até perder o fôlego para, então, abandoná-la até o próximo momento de sufoco. Que profundo incômodo não ter ideia do que lhe poderia acontecer no dia seguinte, depois de mais uma pílula, mais uma dose de vida. Às vezes, quando sentia preguiça ou desânimo, vinha de novo o sobressalto: era preciso viver antes que a incerteza batesse à sua porta. Talvez por isso tenha sido sempre, toda a vida, tão inquieto. Mal concluía qualquer atividade, já estava às voltas com a famosa pergunta: o que vem depois? Aprendeu várias línguas, viajou, mudou-se incontáveis vezes. Esse era um dos resumos possíveis de sua vida.

Adicione-se a essa curta história o fato de que adoeceu por meses, perdeu em dores de distintas intensidades cerca de um ano de seus trinta e poucos. E, depois disso, meio inconscientemente, contava sua idade a partir daquele dia, registrado claramente em sua memória. Voltar a caminhar, literalmente pé-ante-pé, sustentar as pernas, subir dois lances de escada. Amigos e família ao redor, celebrando. No entanto, naquela manhã de passos curtos e pouco certeiros, faltou o fôlego, sentou-se. Naquele momento, aprendera a valorizar o pequeno que era grande. Não tinha alternativa. Depois de dois meses internado, com as olheiras ultrapassando as barreiras de seu rosto, tinha de se agarrar àquele fio de vida, o caminhar. Mais tarde, ao sair do hospital, valorizou as cores dos dias, mas teve medo de estar ali, de pertencer novamente ao exterior. Aos poucos, esqueceu-se da redescoberta consciente da vida que se desdobrava diante de seus olhos e dos medos que a rondavam, e voltou a viver como os demais, com os demais. No entanto, a cada dois meses, era colocado à prova novamente, conectado a cabos que lhe vendiam vida longa, diante de médicos crédulos, que insistiam em dizer: é melhor se cuidar, o remédio vai ajudar, os estudos revelam que... 

E naquele dia de lembranças do passado misturadas às perspectivas fluidas do futuro, em que a medicação pingava incolor por uma veia já um pouco castigada, sentiu mais uma vez como se a vida pudesse se partir. A vida era mesmo um fio. E desse fio não queria e não devia se desprender. Pensou em dormir para apaziguar a mente já atribulada e esquecer, por alguns instantes, as cores verdes e brancas daquele quarto impessoal, solitário, insosso. Fugir, de dentro para fora. Foi então que veio o lanche da enfermaria e, diante de uma torrada salgada e um café mal feito, celebrou a simpatia daquela atendente que lhe trouxe a bandeja torta, mal acabada. Lembrou-se de que tinha de cancelar um compromisso em função de seu dia hospitalar, entrou em contato com o pessoal do trabalho, o celular voltou a tocar. Era o fio da vida retomando seu ciclo. Ao menos pelos próximos dois meses. Tic-tac.