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26.8.12

Olhos


Quando entrou no banheiro, tudo o que viu foi um par de olheiras profundas. Havia dias, muitos dias, que não se colocava diante de um espelho. Na verdade, nos últimos tempos, a única maneira de se ver era através dos olhos dos outros. O que inicialmente se reconhecia como “janela da alma” - do outro - tornou-se para ela seu próprio reflexo. No olhar dos amigos que a visitavam - e também da família -, identificava claramente seu declínio. Nos médicos e enfermeiros, não. Não era capaz de identificar neles qualquer reflexo de sua condição. Para ela, eles funcionavam como verdadeiros vitrais transparentes. Nada ali era refletido.

E agora, diante daquela imagem, era capaz de entender o porquê das lágrimas daqueles que não a viam há algum tempo. Estava um horror. Se não cheirava mal, era porque via no banho o único ponto de vaidade mantido naquele período. Todo o mais se esvaiu em doença. As roupas não lhe importavam, os sapatos, os cabelos, seu corpo como objeto estético. E, ao se afastar dessa relação direta entre corpo e estética, afastou-se também dos espelhos e, com isso, da realidade de sua condição.

Até então, embora soubesse que não andava bem, não havia se dado verdadeiramente conta do que  lhe vinha acontecendo. Estava diante de uma situação passageira, dizia para si mesma, já já isso acaba. Naquele dia, porém, a mirada despretensiosa no espelho mostrou o contrário. E as sensações dos últimos dias despencaram sobre suas pernas frágeis, leves, finas.

De repente, percebeu como era difícil se sentar em uma cadeira convencional. Doíam-lhe os ossos. Olhou em volta e se deu conta: nas últimas semanas, passara boa parte de seu tempo na cama, inclusive para fazer as refeições. 

Deixou de andar fazia tempo: deslocava-se com a ajuda de uma cadeira de rodas e a força dos braços e pernas de sua mãe, ou de um enfermeiro, ou do marido. Quem estivesse mais próximo ou mais disposto a levá-la até o corredor ou ao jardim.

Embora fizesse sol lá fora, não gostava mais de passear. Era preciso muita insistência para que se mobilizasse a sair do quarto.

Foi assim, num estalo, diante daquele armarinho de banheiro, que experimentou a dura realidade de sua vida. Como se, antes daquilo, se sentisse apenas dentro de um filme, um conto de fadas, a história de outrem.  Como não se deu conta de que suas pernas já não acompanhavam seus anseios, seu corpo parecia ter minguado, seus cabelos estavam caindo?

Olhou ao redor. Viu as barras de apoio dentro do box do banheiro, ao lado do vaso e também na pia. A vista começou a turvar. Precisava sentar. Respirou fundo, colocou as mãos sobre a barra em torno da pia, olhou-se novamente no espelho. E deu-se conta: não lhe causava assim tanta espécie o que via diante do espelho, incomodava-lhe o reflexo no olhar dos que a visitavam. Mais difícil que viver uma doença era viver a doença aos olhos dos outros - próximos ou distantes.

Por isso, sentia-se tão à vontade diante dos tantos médicos que a visitavam diariamente. Acostumados a situações tão piores, nada demonstravam ao ver seus cambitos a cambalear pelo quarto e pelos corredores do hospital.

A vista foi escurecendo, não sentia mais as pernas, os braços se soltaram. Caiu desfalecida. Ao despertar, viu sua mãe com os olhos brilhantes. Dentro deles, seu reflexo. E a dor. Calou-se. Pediu morfina e solidão. Despediu-se daquelas retinas ao seu redor e, quando a porta bateu, prestes a dormir, pensou, já vai passar.

2 comentários:

Julia Scamparini disse...

muito bom, jana!

Gabriela Grossi disse...

Jana, eu ignorante, não sabia da existência de tão lindo blog. Amei!
Beijo